Vista Aérea

Sobre diversos domínios e com olhares diversos

Liberalização do transporte aéreo e protecção dos passageiros

A liberalização do transporte aéreo é, frequentemente, identificada como desregulamentação, por assimilação da terminologia decorrente do Airline Deregulation Act, aprovado pelo Congresso dos E.U.A., em 1978, e que, de algum modo, influenciou o processo que foi implementado na Europa.

Desregulamentação não significa, como à primeira vista poderia parecer, que a actividade ficou livre de toda a regulação. O transporte aéreo sempre foi regulamentado desde os seus primórdios. As primeiras regras internacionais surgiram na Convenção de Paris de 1919, que lançou as bases do sistema da navegação aérea.

Uma das primeiras questões que, então, se colocou foi a de decidir se o espaço aéreo era livre ou se, pelo contrário, cada Estado tinha o direito de soberania sobre o seu espaço aéreo, tese esta que prevaleceu e que ainda se mantém.

No final da II Guerra Mundial, era já previsível o papel que a aviação civil iria representar em tempo de paz, dados os progressos técnicos e iniciativas comerciais entretanto verificados. Assim, em Dezembro de 1944, numa Conferência reunindo inicialmente cinquenta e dois países, foi aprovada a Convenção de Chicago que, decorridos 71 anos, continua a constituir a mais importante e abrangente regulamentação no transporte aéreo internacional, à qual entretanto aderiu a larga maioria dos Estados. Esta Convenção previu que fosse criada uma instituição internacional especializada para assegurar a contínua actualização jurídica e técnica do texto inicial e para constituir um fórum de debate e de apresentação de propostas, que ao longo dos anos tem constituído a principal fonte de regulamentação aeronáutica internacional – a O.A.C.I. (Organização da Aviação Civil Internacional), conhecida como I.C.A.O. no acrónimo inglês.

Também, desde uma época ainda recuada da aviação, foi sentida a necessidade de estabelecer um regime uniforme em matéria de responsabilidade, donde surgiu a Convenção de Varsóvia de 1929.

Naturalmente, a regulação do sector é complexa, como a própria actividade. Muitas outras Convenções e instrumentos internacionais foram sendo acordados ao longo dos anos, para além das regras emanadas pelas Autoridades Aeronáuticas de cada Estado, das quais avulta a F.A.A. (Federal Aviation Administration) nos E.U.A. pelo impacto das suas orientações.

Na Europa, em 1954, foi criada a C.E.A.C. (Comissão Europeia da Aviação Civil) com vista a promover a coordenação e o desenvolvimento do transporte aéreo e a análise dos problemas particulares que o mesmo coloca na Europa que, embora de carácter consultivo, influenciou as principais decisões políticas sobre a matéria. Em associação com a C.E.A.C., foram constituídas, nos anos 70, as J.A.A. (Joint Aviation Authorities) para definirem os requisitos comuns de aeronavegabilidade, operacionalidade e manutenção das aeronaves civis. Hoje as J.A.A. foram substituídas pela E.A.S.A. (European Aviation Safety Agency).

Há ainda que juntar a auto-regulação do sector decorrente das associações das companhias aéreas, nomeadamente, da I.A.T.A. – Internacional Air Transport Association –, apesar de ter perdido força em algumas áreas, devido à extensão ao transporte aéreo das leis proibindo práticas anticoncorrenciais (anti-trust, cartelização), segundo as quais não são admissíveis acordos entre operadores ou suas associações, susceptíveis de restringirem a concorrência.

Convém esclarecer que as notas que antecedem não pretendem ser, sequer, um resumo da regulação que enquadra o transporte aéreo, mas apenas sublinhar a sua enorme abundância, multiplicidade e tradição, cobrindo virtualmente todas as suas áreas.

No essencial, o processo de desregulamentação nos E.U.A. consistiu apenas em eliminar e/ou rever as competências que até então estavam atribuídas à Administração Pública no condicionamento do transporte aéreo doméstico, com o objectivo de promover um sistema de transporte aéreo conforme às leis do mercado, fundado na livre concorrência, flexibilizando, designadamente, o acesso ao mercado (rotas, capacidades e horários) e a oferta de tarifários competitivos.

Na Europa, a liberalização do transporte aéreo assentou no objectivo de construir o mercado único europeu. Numa fase inicial, entendeu-se que o transporte aéreo estava excluído do Tratado de Roma, o que viria a inverter-se no final da década de 70 início de década de 80, não só por influência das ideias liberalizantes provenientes dos E.U.A, mas por força de algumas decisões do Tribunal de Justiça das Comunidade (agora Tribunal de Justiça da União Europeia) (1) que considerou que as regras do Tratado sobre concorrência eram aplicáveis ao transporte aéreo. Ao que há que juntar, também, a pressão no sentido de alcançar um mercado comum (2).

Assim, sem prejuízo de alguma outra regulamentação sobre aspectos específicos, em 1983, surgiu o que pode considerar-se um primeiro passo na construção do mercado europeu do transporte aéreo, com a Directiva referente à abertura dos voos regulares intra-regionais entre Estados membros, desde que operados com aeronaves com capacidade inferior a 70 lugares e sujeitos a diversas limitações. Depois, em 1986, foi aprovado o Acto Único Europeu, que reviu os Tratados de Roma, com o objectivo de relançar a integração europeia e concluir a realização do mercado interno até 1992, na sequência do qual surgiram os chamados três “pacotes” de liberalização do sector do transporte aéreo.

O primeiro, em 1987, que incluía a aplicação ao sector das regras do Tratado de Roma sobre concorrência; a proibição de certas categorias de acordos e práticas concertadas; regras sobre a flexibilização da aprovação das tarifas relativas aos voos entre os Estados membros e regras sobre a obrigação de cada Estado aceitar designação de vários transportadores (multi-designação); a repartição de capacidade, etc. Seguiu-se, em 1990, o segundo “pacote”, que alterou o antecedente, com o propósito de uma progressiva liberalização. Em 1992, foi aprovado o terceiro “pacote” que introduzia regras comuns sobre a concessão de licenças às transportadoras aéreas comunitárias; sobre o acesso ao mercado comunitário e sobre a livre fixação de tarifas por cada transportadora. Esta legislação foi, entretanto, substituída pelo Regulamento (CE) n.º 1008/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Setembro de 2008, que eliminou algumas restrições comerciais remanescentes, progredindo na construção do “Mercado Único Europeu da Aviação” (3).

Ao processo de liberalização no espaço da União Europeia seguiu-se um novo e significativo avanço com a negociação e assinatura do Acordo de Céu Aberto (Open Skies) celebrado entre a UE e os Estados Unidos da América em 2007 e revisto em 2010, para maiores graus de liberdade (4). Este acordo consagrou a abertura total das rotas transatlânticas às companhias europeias e americanas, permitindo, em termos gerais: efectuar voos para os Estados Unidos com partida de qualquer aeroporto europeu e vice-versa (independentemente da nacionalidade da companhia da UE, os E.U.A. reconhecem a sua natureza europeia); operar sem restrições no que respeita a rotas e à quantidade de voos e de lugares disponibilizados e fixar os preços de acordo com o mercado (5).

A liberalização foi prosseguida em nome do interesse dos consumidores, assumindo que a concorrência promove maior eficiência, reduz as tarifas, aumenta a possibilidade de escolha, melhora o produto e a qualidade do serviço. Assim, a correlação de forças num mercado concorrencial seria, aparentemente, suficiente para regular as relações entre produtores de bens e prestadores de serviços e os respectivos consumidores, uma vez que estes, quando não se considerarem satisfeitos, podem sempre optar por outro fornecedor. No entanto, como se sabe, a teoria pura nem sempre conduz aos resultados esperados, porque a realidade resulta da confluência de muitos factores. Mas, não deixa de ser interessante notar que, no actual mercado concorrencial, os consumidores em geral e os passageiros aéreos em particular gozam de mais direitos e de níveis de protecção muito superiores aos que se verificavam anteriormente, quando o mercado se caracterizava por ser monopolístico, cartelizado ou de muito reduzida concorrência.

Podem apontar-se diversos factores que contribuíram, em especial na Europa, para a adopção de regulação proteccionista dos passageiros:

  1. O desenvolvimento dos movimentos e organizações de defesa dos consumidores, que tem vindo a ocupar crescente importância, exercendo pressão sobre os reguladores.
  2. O sistema económico passou a atribuir a maior importância à satisfação do consumidor e as empresas assumiram como prioridade prosseguir politicas de marketing orientadas para o consumidor (6) e, por isso, têm uma maior predisposição não só para adoptar códigos de conduta voluntários, mas, também, para aceitar regulação sobre a matéria.
  3. Embora o Tratado de Roma não consagrasse especificamente a protecção dos consumidores, as alterações introduzidas pelo Acto Único Europeu (1986) e pelo Tratado de Amesterdão (1997) passaram a contemplar a finalidade de assegurar um elevado nível de protecção dos consumidores, que passou a figurar entre as prioridades a prosseguir (7). Assim, no preâmbulo do Regulamento (CE) Nº 261/2004 (8) refere-se que A acção da Comunidade no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objectivo de garantir um elevado nível de protecção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de protecção dos consumidores em geral”.
  4. A necessidade de harmonizar o mercado, ou seja, estabelecer um quadro legal comum a definir os mínimos obrigatórios para todas as transportadoras, e, também por essa via, obter a sua integração no sistema comum. Esta razão foi assinalada no preâmbulo Regulamento (CE) Nº 261/2004, ao mencionar a Comunidade deverá elevar os níveis de protecção (…), quer para reforçar os direitos dos passageiros, quer para garantir que as transportadoras aéreas operem em condições harmonizadas num mercado liberalizado”. Tal objectivo resultava, também, de forma clara do preâmbulo do Regulamento (CEE) Nº 295/1991 (9) ao considerar que “é necessária uma acção comum no domínio da protecção dos interesses dos utentes dos transportes aéreos, de forma a garantir um desenvolvimento harmonioso de um sector chamado a evoluir num ambiente em plena mutação; (…) o estabelecimento de determinadas normas mínimas comuns no domínio da compensação por recusa de embarque deverá contribuir para a manutenção da qualidade dos serviços oferecidos pelas companhias aéreas num contexto de crescente concorrência.”

Como aparte, pode dizer-se que se tratou de limitar a concorrência, criando algumas baias, em nome de outros valores.

Acresce, ainda, o facto de que as companhias tradicionais ou “de Bandeira” já observavam normas internas de assistência e protecção aos passageiros, vertidas nos chamados “Passenger Handling Manual” seguindo padrões da IATA, contrariamente ao que se passava com as novas e irreverentes “low cost” focadas apenas no preço. Esta circunstância facilitou a melhor aceitação pelas primeiras da nova regulamentação da UE a estabelecer um quadro normativo comum, que neste aspecto era mais penalizador para as segundas (10).

Não vamos analisar o Regulamento (CE) Nº 261/2004, que se encontra disponível em folhetos explicativos em todos os aeroportos, mas, em próximo escrito, far-se-á breve referência a alguns aspectos mais controversos, nomeadamente, aos que foram submetidos ao TJUE.

É um facto comprovado que a liberalização no mercado Europeu (e, também, na América do Norte), ao aumentar a concorrência, provocou uma “revolução” no mercado da aviação civil, obrigando as companhias aéreas a reduzir custos e margens, o que levou a que muitas soçobrassem, incapazes de se adaptarem. E do mesmo modo, este novo ambiente promoveu a entrada de novas e promissoras empresas algumas das quais, surpreendentemente (ou talvez não), tiveram vida efémera.

Os novos modelos tarifários e o apelo das tarifas reduzidas, oferecidas pelas transportadoras (“novas” e “velhas”) tiveram um efeito potenciador na procura, provocando grandes aumentos no tráfego, em especial, nos mercados com maior dimensão.

A regulação, de um modo geral, trouxe mais segurança ao transporte aéreo e mais protecção aos passageiros, num mercado mais global.

A liberalização do transporte aéreo teve, assim, um papel essencial na globalização do comércio mundial, das viagens e do turismo. E, do mesmo modo, a economia mundial depende, em grande medida, de um sistema de transporte fiável, eficiente e competitivo, que tem de ser preservado (não sufocado) pela nova cultura reguladora.

Dezembro de 2015

Luís Filipe Silveira

(1) O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem desempenhado um trabalho importante na construção da União Europeia, também no domínio do transporte aéreo, tal como em outras áreas, sem prejuízo de algumas decisões suscitarem discordâncias. Mas, ao fundamentar as suas decisões em interpretações não restritivas dos Tratados e demais legislação, tem contribuído para ultrapassar impasses, promover e/ou impor soluções e, na sequência, importantes desenvolvimentos legislativos baseados naquelas decisões.

(2) Na altura considerava-se que o preço das viagens aéreas na Europa era muito elevado devido à falta de concorrência que provocava a ineficiência do sector, como consequência de os transportes aéreos e marítimos serem as únicas áreas da economia da Europa em relação às quais o Conselho Europeu tinha falhado a aplicação das regras sobre práticas restritivas da concorrência e abuso de posição dominante. As tarifas na Europa Ocidental estariam entre as mais altas do mundo – em média 35% a 40% superiores às praticadas na América – referia-se no THE ECONOMIST, Europe’s Air Cartel, 1/Nov/1986.

(3) É vasta a harmonização estabelecida pela regulamentação da UE no domínio da aviação civil, por vezes em complemento de acordos e convenções internacionais. Apenas de forma genérica refere-se: atribuição de faixas horárias (slots) nos aeroportos; actividade de assistência em escala (handling); taxas aeroportuárias; níveis de ruído nos aeroportos; poluição atmosférica – emissões de CO2; regras de conduta dos Sistemas Informatizados de Reservas (SIR/CRS), para assegurar o acesso equitativo às redes de distribuição e a evitar que estas redes influenciem a escolha do consumidor; obrigações de serviço público; subsidiação/ajudas de Estado às companhias aéreas; licenciamento de pessoal técnico, pessoal navegante e controladores; regras técnicas referentes à construção, operação e manutenção de equipamentos e peças aeronáuticas; procedimentos de segurança em terra e no ar contra actos ilícitos; procedimentos de inspecção de segurança operacional de aviões estrangeiros nos aeroportos de cada Estado membro (SAFA); gestão do tráfego aéreo; seguros; responsabilidade civil das companhias aéreas; transparência do tarifário que tem de revelar o preço final, incluindo todas as taxas e encargos, e que tem de ser aplicado sem discriminação; direito de acesso e assistência gratuita aos passageiros com mobilidade reduzida; protecção dos passageiros em caso recusa de embarque por overbooking e de irregularidades operacionais; etc.

(4) O TJUE proferiu diversas decisões no ano 2002, considerando ilegais alguns aspectos dos acordos bilaterais de serviços aéreos, celebrados entre Estados membros e países terceiros, por contrariarem a ordem comunitária, confirmando, também, a competência exclusiva da Comunidade para negociar, assinar e concluir acordos que tratem de matérias da sua competência. Na sequência, foi publicado o Regulamento (CE) nº 847/2004, relativo à negociação e aplicação de acordos de serviços aéreos entre Estados-Membros e países terceiros. O novo regulamento cria um sistema de notificações e de autorizações. Caso pretenda dar início a negociações, o Estado-Membro deve informar a Comissão que pode opor-se, se entender que as negociações são susceptíveis de conduzir a um acordo contrário ao direito comunitário.

(5) Não obstante a revisão do Acordo, ainda subsistem matérias em negociação entre as partes e, aparentemente, haverá aspectos em que, na prática, as companhias americanas podem usufruir de maiores benefícios do que as suas congéneres europeias.

(6) Até a Ryanair lançou, há cerca de dois anos, um programa de acção denominado “Always Getting Better”, com vista a reverter a opinião negativa de que a companhia gozava no mercado.

(7) Mesmo antes das alterações aos Tratados, a politica comunitária não era insensível à problemática da defesa dos consumidores. A partir de 1979, tal preocupação está presente em Directivas como, por exemplo, acerca da indicação de preços em alguns produtos, ou em relação à regulação dos contratos negociados à distância, etc.

(8) Regulamento (CE) Nº 261/2004 do Parlamento e do Conselho, de 11/02/2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) nº 295/91 (publicado no JOUE Nº L 46 de 17/02/2004).

(9) Regulamento (CEE) nº 295/91 do Conselho, de 04/02/1991, que estabelece regras comuns relativas a um sistema de compensação por recusa de embarque de passageiros nos transportes aéreos regulares (publicado no JOCE Nº L 36 de 08/02/1991).

(10) Refira-se a propósito que, logo em 2004, num caso submetido ao Tribunal de Justiça da União Europeia acerca da incompatibilidade entre o Regulamento nº 261/2004 e a Convenção de Montreal (Processo C-344/04), a European Low Fares Airline Association (ELFAA) alegou “que as companhias aéreas de baixo custo que representa sofrem um tratamento discriminatório por as medidas previstas nos referidos artigos imporem as mesmas obrigações a todas as transportadoras aéreas, sem distinção com base nas suas políticas de preços e nos serviços que oferecem”. Argumento que o Tribunal contrariou ponderando que “os prejuízos sofridos pelos passageiros dos transportes aéreos em caso de cancelamento ou atraso considerável de voos são análogos, sejam quais forem as companhias com que contrataram, e não têm relação com as políticas de preços praticadas por estas. Por isso e a não ser que o princípio da igualdade viesse a ser infringido face ao objectivo, pretendido pelo Regulamento nº 261/2004, de reforçar a protecção de todos os passageiros das transportadoras aéreas, o legislador comunitário tinha de tratar de forma idêntica todas as companhias aéreas”.

Published by