Vista Aérea

Sobre diversos domínios e com olhares diversos

Antigas e novas Cruzadas

Nos séculos XV e XVI, os portugueses consideravam-se mandatados pela cristandade para levar o Evangelho aos povos que estariam mergulhados nas trevas do paganismo.

Há mil e trezentos anos, grande parte daquilo que é hoje Portugal e Espanha – a Península Ibérica – chamava-se al-Andalus

Consta que o Presidente americano George W. Bush, perante o desmoronar das Torres Gémeas de Nova Iorque em 11 de setembro de 2001, terá ameaçado perseguir os extremistas árabes autores do atentado – Al Qaeda – com tal determinação como se se tratasse de uma nova Cruzada. Mais recentemente, um dirigente de um país vizinho do Afeganistão (creio que o Presidente iraniano) terá manifestado indignação pelas presenças russa, durante dez anos, e americana, durante vinte, considerando tais invasões daquele país como uma Cruzada de trinta anos contra o povo árabe.

A história é longa e vasta, ou seja, vem de muito longe e de muitos lados. Mesmo querendo mencionar só os acontecimentos que se relacionem mais diretamente com Portugal, teríamos que referir, e, mesmo assim, por alto, os tempos em que, ainda antes de haver um país com este nome, a Península Ibérica foi dominada pelos árabes que, vindos de África, haviam cruzado o Estreito de Gibraltar. E, dando um salto de três séculos, remeter para a participação europeia nas cruzadas com vista a expulsar da Terra Santa os “infiéis” islamitas.

Como se sabe, as três grandes religiões do mundo ocidental – judaísmo, cristianismo e islamismo, têm muito em comum, desde logo os factos de serem monoteístas, terem um livro sagrado como base da fé – a Bíblia nos dois primeiros casos e o Alcorão no terceiro, e o de terem a “Terra Santa” como grande referência. Mas sempre foram alimentados sentimentos de rivalidade e antagonismo entre elas.

Pertencemos ao Mundo Cristão: Portugal nasceu já o cristianismo tinha onze séculos e os sentimentos antijudaicos, mas sobretudo anti-islâmicos tinham-se desenvolvido. Os árabes tinham antes ocupado grande parte dos mesmos territórios, constituindo a nação Al Andalus. O domínio árabe, apesar de ser posteriormente vencido, deixou múltiplas influências, designadamente culturais. Com efeito, um estudo recente faz a ligação entre essa partilha de influências: “A islamização do Al-Andalus ficou-se a dever a um longo processo de aculturação das populações, especialmente as urbanas, a uma nova realidade cultural e religiosa, a qual foi acompanhada pela abertura de novas rotas marítimas e de novos mercados.”, concluindo que essa experiência veio a tornar possível o estabelecimento, baseado na Declaração de Barcelona, no âmbito da União Europeia, de um quadro de cooperação multilateral entre a própria UE e doze países da bacia mediterrânea, abrangendo aspetos económicos, sociais, humanos, culturais e questões de segurança comum. Esta parceria assentou num espírito de solidariedade e de respeito das especificidades de cada um, complementando outras iniciativas a favor da paz, da estabilidade e do desenvolvimento da região.

Embora o próprio cristianismo tenha sofrido diversas cisões ao longo dos séculos, que deram origem às igrejas católica, ortodoxa e protestante, a consciência de termos origem no judaísmo nunca deixou de estar presente. Já em relação ao mundo árabe, esteve sempre mais entranhado na nossa cultura o entendimento de que, sim, podiam ser também monoteístas, terem o Al Corão como Bíblia e considerarem Maomé o Profeta ao nível de Jesus Cristo, mas o certo é que a sua devoção só se tinha desenvolvido no ‘nosso’ século VII, após a morte do seu Profeta em 632, altura em que o mundo islâmico se reduzia a uma parte da Península Arábica. Um século depois é que se desenvolveram em grande expansão, estendendo-se à África (deserto do Saara principalmente), à Ásia Central, à Índia, à Península Ibérica…

O mais grave, porém, nas perspetivas judaica e cristã, é que, entretanto, tinham ocupado a Palestina, e particularmente Jerusalém, Terra Santa, o que levou muitos nobres, alguns deles soberanos na Europa, a organizar as Cruzadas – oito, entre os séculos XI e XIII, com o objetivo de os expulsar de lá.

Portugal, ainda recém-nascido, digamos assim, teve escassa participação nos movimentos das Cruzadas: eventualmente ter-se-á manifestado o apoio dos representantes da igreja, alguns cavaleiros terão participado com os seus séquitos e alguns nobres com outros contributos, para além dos inúmeros devotos que se integraram em peregrinações à Terra Santa. No seu decorrer, verificou-se o apoio dos guerreiros Cruzados que passavam pelo território português a caminho da Terra Santa para que os portugueses se defendessem contra os árabes, também designados como islamitas, muçulmanos, mouros ou, genericamente, como infiéis, que tentavam manter ocupadas cidades como Lisboa, Santarém, Évora, Beja e Silves. Destaque-se o cerco de Lisboa de 1147 e o papel de Afonso Henriques, apoiado pelos Cruzados para vencer e expulsar os árabes, a título de exemplos mais significativos, até pela sua relação com a fundação e a declaração de independência do nosso país.

Nos séculos XV e XVI, os portugueses consideravam-se mandatados pela cristandade para levar o Evangelho aos povos que estariam mergulhados nas trevas do paganismo. Assim, podiam considerar que as suas missões de colonização eram também para evangelizar, cristianizar, ou seja, civilizar, dado que, na época, não se concebia civilização fora do Cristianismo. No empreendimento da colonização portuguesa, face à resistência de alguns povos nativos, os portugueses, tal como outros colonizadores europeus, desenvolveram ações, muitas delas brutais, de submissão e “pacificação”.

Já lá vai agora quase meio século sobre a revolução de 25 de Abril de 1974, mas quem tenha mais que essa idade, lembrar-se-á que, nas referências aos nativos, especialmente aos que fossem suspeitos de participar ou sequer simpatizar com os movimentos de libertação das colónias, eles eram classificados como terroristas.

Artigo publicado pelo autor no jornal Correio dos Açores de 07.11.2021.

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